Intertextualidade Manuel Bandeira e Millôr Fernandes (Pasárgada)


Vou-me embora de Pasárgada
Sou inimigo do rei
Não tenho nada que quero
Não tenho e nunca terei
Vou-me embora de Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
A existência é tão dura
As elites tão senis
Que Joana, a louca da Espanha
Ainda é mais coerente
Do que os donos do país.

(Millôr Fernandes. Folha de S. Paulo, março/2001)


Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive.
(Manuel Bandeira. “Bandeira a Vida Inteira”. Editora Alumbramento – Rio
de Janeiro, 1986, pág. 90)



Pasárgada, poesia de Manuel Bandeira (que é um poema conhecido, consagrado, um cânone) e uma releitura do mesmo poema realizada por Millôr Fernandes. Manuel Bandeira é da Primeira Geração Modernista e sua característica é uma linguagem renovada ao falar do cotidiano. As lentes líricas de Manuel Bandeira transformam cenas banais do dia-dia em poesia "é o olhar terno para o cotidiano". Segundo o próprio autor, o poema "veio" na sua primeira vez, na adolescência quando traduzia textos em latim e nestes textos Ciro estava construindo uma casa de veraneio e o nome era Pasárgada, que significa campo dos persas. Então sua imaginação começou a tentar criar este lugar, como seria Pasárgada. Mas foi na vida adulta, cansado da vida, vindo do trabalho que o autor falou: "Vou-me embora pra Pasárgada!" e o poema veio inteiro. A Pasárgada de Manuel Bandeira é uma cidade imaginária que o eu- poético idealiza como um lugar perfeito e onde tudo pode ser realizado. A voz que fala está desapontada, sem esperanças e cansada da sua realidade e usa a fuga para o seu imaginário onde fica uma cidade em que todos os seus desejos serão realizados. Em Pasárgada o eu poético é amigo do rei, a autoridade maior do lugar e consequentemente tudo que quiser ou que desejar estará ao seu dispor, pois no verso "Aqui eu não sou feliz" fala claramente que no mundo real é infeliz. A ausência de leis ou regras a cumprir, a liberdade sexual para ter a mulher que quiser e "um processo seguro contra concepção" refletem o desejo de realizar coisas que no seu "mundo" real não são possíveis. Bem como o uso de drogas "à vontade", é mais um desejo que só em Pasárgada pode ser realizado. E ainda há a referência dos contraceptivos que funcionam e portanto não há motivos para preocupação com gravidez indesejada em Pasárgada. Outro fato interessante é o fato do eu poético tratar de forma idílica as prostitutas no verso "pra gente namorar", termo só usado para as "moças de família", é como se fosse uma forma de respeito também. Tudo é tão subversivo em Pasárgada, que o parentesco também "quebra sua ordem" e Joana a Louca da Espanha é a contraparente da nora que ele nunca teve! A rainha espanhola Joana, era uma mulher a frente de seu tempo, inteligente, ousada, que não se conformava em ficar sem fazer nada, queria governar, realizar coisas...E ainda amava seu marido, o rei Felipe "O Belo", e demonstrava isso em uma época de casamentos arranjados para juntar fortunas, não era comum e até "loucura" demonstrar amor. Outra "imagem" existente no poema é a infância do autor que foi privado da liberdade das brincadeiras infantis e em Pasárgada ele realiza o sonho de tomar banho de rio, banho de mar, subir em pau-de-sebo, montar à cavalo e ouvir as histórias de Rosa, sua babá, que é homenageada no poema. E quando estiver triste, com vontade de se "matar", há a fuga para Pasárgada, lá tudo é possível, lá "sou amigo do rei". A Pasárgada de Millôr Fernandes é o retrato do desencanto com a situação política e econômica brasileira, pode-se afirmar que o autor fala do Brasil devido a semelhança dos fatos narrados com os problemas do nosso país. No primeiro verso do poema, que também é o título, em vez do eu poético ir para Pasárgada, seu desejo é de ir embora de Pasárgada. E então se inicia o poema com a crítica social a esta cidade imaginária que é a representação do pessimismo diante da realidade da vida. Após o primeiro verso, que é a repetição do título do poema, o eu lírico afirma que é inimigo do rei, informação contrária ao poema de Manuel Bandeira. E ser inimigo do rei significa também não aprovar as atitudes desta pessoa, no caso, pode-se entender que a referência é feita ao presidente do país, que é a nossa autoridade máxima. Nos versos seguintes em que o eu poético afirma que a existência é dura, as elites são senis e que não tem e nem nunca terá nada do que deseja, podemos confirmar o seu sentimento de revolta e pessimismo diante da situação caótica de Pasárgada. No verso "Aqui não sou feliz" que é o mesmo verso de Manuel Bandeira em Pasárgada, mas há a diferença de sentido atribuído que para um significa a realidade com a perspectiva de ser feliz em Pasárgada e para o outro o eu poético é a realidade do seu sentimento e sem ter nenhuma opção de fuga para a felicidade. A rainha espanhola Joana, no verso de Millôr Fernandes, mesmo com toda sua "loucura" é mais "coerente do que os donos do país". O contexto social brasileiro é denunciado no poema ao se referir, também, na forma como a polícia age "baixando o pau", ou seja, com violência, o exercício que o trabalhador tem tempo para fazer é nos velhos trens, lotados, a caminho e na volta do trabalho. A voz que fala está angustiada que fala está cansada do país em que tudo a revolta, sem esperança, que já comprou ida sem volta e diz "Aqui não quero ficar", não tem nada, nem mesmo a recordação. Está muito claro seu sentimento e o que quer dizer, não há metáforas ou outro meio de disfarçar o que quer transmitir, o poema é muito objetivo. E a outra crítica social que há no texto poético é sobre a alta taxa de natalidade, a falta de planejamento familiar que é uma das causas do aumento desordenado da população. O Estado não consegue alimentar, abrigar e educar tanta gente. E é nos versos "Nem a fome e doença, Impedem a concepção" que estes fatos podem ser relacionados. E ainda fazendo uma comparação entre o poema e a realidade brasileira e até mundial, o telefone não telefona: como está sendo o serviço prestado pelas operadoras de telefone fixo e móvel?
Não é atual esse tema? E preços altos, linhas cruzadas, clonadas, fora de área...
No verso "A droga é falsificada" é também um fato contemporâneo que se confirmava imprensa escrita, televisiva e outras fontes que atualmente falsifica-se inclusive drogas, que são misturadas com produtos químicos para render, não há mais droga pura.
Em se falando de prostitutas aidéticas é outro retrato atual.
A expansão do vírus da AIDS, que embora não tenha mais tanta vez na mídia, está aí e é preocupante. E mesmo assim, a "geração do ficar" não parece preocupada com isso.
Finalizando, a tentativa de interpretar um poema claro como este, percebemos as características contemporâneas no texto de Millôr Fernandes, com a presença da crítica social e humor sarcástico para denunciar os problemas sociais e políticos que presenciamos nessa época de mensalão, juízes presos, memórias de Bruna Surfistinha, cracolândia, chacinas...

O autor está ou não está falando da realidade?

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